quinta-feira, 14 de julho de 2011

Magdalene

Franz von Stuck, The Kiss of the Sphinx, 1895 

Magdalene Andrade, 65 anos. Viúva desde os vinte e cinco acostumou-se com sua vida de mulher solteira. Autônoma, sem nenhum bigodudo em casa, a chegar bêbado, enchendo o saco dela sobre o gosto insosso do feijão ou a cerveja que não tá gelada. Morava perto da Praça do Derby, num prédio caixão, quase em frente ao canal da Agamenon. No verão, quando fazia maré seca, sua casa ficava incensada com cheiro de cu. Ela, então, acendia uma vela de alfazema e assistia diariamente a seu programa matutino de receitas. Aprendia a fazer tortas, carnes guisadas e até mesmo fondues. Pensava somente que essa comida das novelas não devia ter graça nem gosto, apesar de bem preparadas e todos comerem fazendo cara de felicidade de comercial. Ali faltava muita coisa, principalmente, coentro e cominho. Pimenta daquelas amarelas de cheiro que dava gosto na comida. Que dava também tesão.


Há 33 anos Magdalene era funcionária dos Correios. Vestia-se com aquela roupa azul e amarela, descia as escadas estreitas de seu edifício e caminhava até a parada de ônibus religiosamente no mesmo horário. O trabalho era uma chatice. Um calor, adicionado de pessoas mal-humoradas, do tempo de espera da fila. Com pressa, olhavam nos seus olhos como se ela devesse fazer o trabalho de um caixa automático. Ignorando seu sorriso suado, suas angústias, sua solidão. Ela pouco reparava então nas pessoas que atendia, quase todas rudes. Mas como havia nela uma áurea romântica, sentia que trabalhar ali era como conhecer o mundo. Ao pegar os envelopes vindo de Belém, Paris, São Paulo, imaginava, de certa forma, que podia absolver a energia contida nas cartas. Matéria, que passava por tantas mãos, tantas bocas, tantos lugares. 


Certa vez, saiu com as amigas para tomar uma cerveja na Rua do Hospício. Sentou numa cadeira de metal branca, pediu uma estupidamente gelada, brindou com as companheiras ao som de um DVD de José Augusto que passava ao fundo do bar. A conversa tava boa, elas falavam do seu gerente, sr. Adolfo Guilherme, motivo de piada nas rodas dessas senhoras. Muito bem casado com uma esposa controladora que fazia, de vez em quando, inspeção no trabalho, ele aproveitava o pequeno momento de solteirice para se soltar em cima das funcionárias, das atendentes, do público que ali esperava. Obviamente que nunca havia sido bem sucedido. Entretanto, a novidade do dia era que, finalmente, uma mulher se encantara por ele. Eram  amantes.


As senhoras debatiam a origem daquele relacionamento. Conversa vai, conversa vem, Rosa achava que era uma doutora muito distinta que uma vez veio entregar um pacote, cheio de gravuras em papel machê, e tiveram que arrumar um envelope especial. Não, dizia Cristina. Era a outra fulana que se inscreveu no concurso da Caixa Econômica Federal e seu Adolfo jogou uma conversinha pra ela de que era especialista em matemática e podia lhe dar aulas particulares. Já Magdalena sabia muito bem a história da namorada de seu chefe. Já a viu a rondar as ruas da madrugada recifense. Desconfiava que era uma dançarina num clube para cavalheiros bastante conhecido perto dali.


Seu Ricardo, o falecido marido, foi um antigo freqüentador desse centro. E três anos após o casamento contraiu uma doença venérea que o deixou sem condições de ter filhos. Assim, ela se conformou com a doença do marido e ainda conviveram mais 10 anos, antes de sua morte definitiva. Numa relação praticamente de paciente e enfermeira. Mais um gole de cerveja.


Quando se preparava para regressar a sua casa, reparou que o senhor que sentava sozinho na mesa ao lado não parava de olhar as suas pernas. Cabelos grisalhos, uma barba rala por fazer, meio careca, camisa jeans semi-aberta e um olhar fixo e compenetrado de alguém que sabia exatamente o que queria. Magdalena não era uma mulher de muitas dúvidas. Disse às amigas que ia ficar mais um pouco, por que tinha pedido um caldinho de sururu que ainda ia vir. E após isso, a abordagem foi rápida.  Passada as apresentações usuais de nome, trabalho, condição civil, time de futebol, o moço a chamou para dançar.


Estava tocando Sábado. Sem pestanejar ela se levantou e o pegou na cintura. Cláudio, o nome do sujeito, ficou encantado com a firmeza dessa senhora. Ela levava a dança inteira, colava no seu corpo com uma sensualidade irresistível, uma vontade, um desejo insaciável. 


Magdalena levou o homem a sua casa. Há cinco anos que não sabia o que era sexo. Ela queria saborear cada momento daquela noite. Com toda sapiência, sabedoria, experiência, acariciou o membro do macho, lambendo e chupando cada gota de suor que havia por baixo daquelas calças. Na mesa de jantar, em frente ao sofá ele a penetrou. Ela pensava que ia rasgar-se por dentro, que estava enferrujada. Mas após meio segundo, seu líquido vaginal escorria como uma fonte de juventude contrastando com sua pele enrugada. E ela gozou tão loucamente que fez Cláudio ter o primeiro orgasmo de sua vida. Uma ejaculação demorada, que parecia nunca acabar, que o fazia tremer e pulsar todos os músculos de seu corpo.


Assustado e maravilhado com o ocorrido, Cláudio escreve um poema num papel amassado no seu bolso e pede Magdalena em namoro. Ela, entretanto, ficou receosa com a rapidez do início do provável relacionamento. Não porque pensava que podia ser aquele homem um assassino, um vagabundo. Não. Se ela tivesse a mínima suspeita disso (e já havia conhecido vários assim) nem teria se dado ao trabalho de levá-lo à intimidade de seus aposentos.


O problema era que o namoro naquela altura seria quase como um casamento. Em uma semana eles estariam morando juntos. E ela arrumaria mais problemas do que solução para sua vida. Não a entendam mal. Havia gostado daquele homem, mas não queria era todo o pacote completo. Sinceramente, ela disse não. Com um olhar triste e cabisbaixo, Cláudio abandona o recinto. Quase dava para perceber uma lágrima em seus olhos.


Ao acordar no outro dia e observar a calmaria de sua residência, Magdalena se sentiu feliz. Feliz pelo sexo que foi maravilhoso, por aquele cheiro de homem que havia permanecido pela casa, e principalmente, por ter a certeza que mesmo com aquela idade sabia ainda muito bem aproveitar os prazeres da vida. Sorrindo, nesse dia foi caminhando para o serviço. E ao chegar à Avenida Guararapes notou um movimento em frente a sua agência. Um grupo de sindicalistas, parados na porta, com faixas de protestos e gritos tentando convencer os funcionários a se juntarem ao movimento. Suas amigas, que estavam lhe esperando para ouvir as razões dela ter ficado sozinha no bar e já farejando que ali iria render uma boa resenha, olhavam-na perguntando o que fazer. Foi quando Magdalene leu rapidamente o folheto que os manifestantes a entregaram, e, decidida como só ela, resolveu aderir à Greve Geral dos Correios de 1999. 


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